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O Poder da Beleza na Narrativa e o Final da Vida - Palavras e Gestos Sementes

Foto do escritor: Doulas do Fim da VidaDoulas do Fim da Vida

Hoje acolhemos Imbolc, o início da primavera. E na companhia das sementes já largadas no solo, há algum tempo atrás, que crescem para o seu interior, e que aguardam nascer à luz, tal como eu, senti deixar aqui palavras que sejam sementes.



Resumo


Como narramos a morte? Que repercussões tem a nível individual e social a forma como narramos este tema? Como é que as narrativas (fílmicas, escritas, veiculadas pela comunicação social, fotográficas e outras) podem trazer beleza e esperança para um assunto que normalmente é tabu na nossa sociedade? Quais os mitos e preconceitos em torno do tema da morte e quais as suas consequências?

Este é um artigo de reflexão critica baseado num trabalho final para a disciplina de medicina narrativa, organizado pelo projeto em Humanidades Médicas do Centro de estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, onde escolhi a narrativa fílmica Okuribito, de Yojiro Takita, para desenvolver as minhas considerações, baseando-me, também, na minha experiência enquanto profissional de Cuidados Paliativos.

Desenvolvo a minha reflexão, mencionando a importância da esperança, a ética relacional, a regra de ouro e platina, a atitude estética da beleza e do ritual e a importância da narrativa na medicina no final da vida.


Palavras chave: Medicina narrativa. Final da vida. O poder da Beleza.



A Beleza, a Esperança e as Narrativas no Fim de Vida



“Without a sense of awe, life is without meaning.”

Lao Tsu


Em qualquer altura das nossas vida, e principalmente naquelas em que nos sentimos mais vulneráveis, nomeadamente na nossa morte, podemos sentir o belo e abraçar a esperança realista tão fundamental para o ser humano. Como se cruzam o belo e a esperança? Quando a cura, do corpo físico, não é possível, o foco da esperança assume uma importância fundamental na forma como as pessoas vivem o período de fim da vida e o estabelecimento de objetivos realistas constitui uma das formas de restaurar e manter a esperança(1). A promoção da esperança está descrita como critério de qualidade dos cuidados (2). A intervenção pedagógica relativa ao envolvimento com a beleza natural, artística e moral pode levar a um aumento na esperança.(3) Esperança na pertença, não apenas das relações humanas mas do mundo natural e cíclico. Esperança em ser cuidado com amor e respeito por quem se é, na fragilidade. Esperança em sentir-se visto, amado, testemunhado, principalmente na fragilidade e vulnerabilidade. Esperança em sentir-se pessoa, para além da doença. Esperança em mais bondade, amor, gentileza no mundo. A esperança não é só um movimento direcionado para quem vai morrer mas também para quem fica. Influência a vida de quem vive o luto, após a perda de alguém que ama. Gary Whited, refere que a nossa sensibilidade poética inata pode ajudar a transformar o trauma que pode estar presente nestas fases de grande vulnerabilidade da nossa vida. A linguagem poética, a sua beleza, que a narrativa fílmica escolhida transparece, abre-nos à possibilidade de nos escutarmos individualmente e aos outros.(4)


A beleza traz-nos a sensação de conexão. A maioria de nós já sentiu o impacto da música, arte, prosa, fotografia, filme ou qualquer outra forma que inspire admiração, através de uma sensação de paz e contemplação. No entanto, apesar de estarmos cercados pelo dom diário da beleza, muitos de nós também vive muito distraído e regularmente exposto à fealdade retratada diariamente pela comunicação social e a inúmeras narrativas de “não-beleza”.(5) A forma como, comummente retratamos a morte, através das narrativas fílmicas, e não só, alimenta, maioritariamente, a nossa desconexão e logo afasta-nos das relações com as pessoas mais vulneráveis. A inclusão regular e intencional da beleza na vida de alguém tem o poder de curar e transformar a nossa maneira de ver e estar no mundo. A experiência da beleza é sempre de expansão, de abertura, de inclusão, de conexão.(5) Porque procuramos criar beleza nos momentos especiais? São nestes momentos que procuramos conexão. A teoria polivagal de Porges explora e mapeia o mapa da evolução filogenética do nosso sistema nervoso autónomo e descreve o que acontece quando nos relacionamos socialmente, quando nos conectamos com arte, e experimentamos uma sintonia vagal ventral. Quando isto acontece, sentimo-nos seguros no mundo, de forma a abrirmos o nosso coração uns aos outros.  A empatia e a compaixão são neurofisiologicamente incompatível com julgamentos e comportamentos defensivos, que nos fecham aos outros, principalmente em situações de grande fragilidade. (4)


“Fazemos do mundo um lugar melhor fazendo com que as pessoas se sintam mais seguras.”

Stephen Porges


O conceito de beleza tem muitas formas e não é fácil de definir. Aqui, nesta reflexão, refiro-me ao conceito de beleza do mundo natural, artística (fotográfico, fílmico, ritualístico) e moral (gentileza, justiça, coragem, bondade, amor, etc). Como Diessner, et all, (6) referem, encorajar a sensibilidade e o reconhecimento da beleza no mundo natural e na arte pode ser um trampolim de desenvolvimento para o reconhecimento da beleza moral no mundo social humano. De igual forma, é necessário experimentar as emoções provocadas pela beleza moral, para preencher a lacuna entre o conhecimento da beleza e a ação. A pesquisa de Haidt, citado por Diessner, et all, (6) demonstra que a apreciação e cognição da beleza moral pode levar à emoção moral de elevação. O que acredito que o filme Okuribito faça. A beleza natural, artística e moral do filme induz o desejo, de quem o vê, de se tornar uma pessoa melhor e seguir o exemplo moral que o filme transparece. De igual forma, o reconhecimento da beleza natural, e ritualista, que o filme mostra, incentiva a nossa sensibilidade, o que, de acordo com Seligman e Csikszentmihalyi, citados por Diessner, et all, (6) pode ser um trampolim para reconhecer e desenvolver a beleza moral no mundo social humano, criando pontes para o terceiro pilar do movimento da psicologia positiva: o desenvolvimento de instituições, comunidades, sociedades e culturas que melhorem o desenvolvimento do “bom caráter”. A narrativa fílmica escolhida, ajuda-nos a desenvolver, empatia, compaixão, bondade, coragem, gentiliza, para além de nos trazer a capacidade de pensarmos sobre os nossos mitos e preconceitos associados ao fim de vida, permitindo-nos reposicionar sobre a nossa prática pessoal e profissional das nossas relações.






Okuribito é um filme que aborda a forma como nos relacionamos com a morte, os cuidados pós morte, o toque no corpo da pessoa que parte, o respeito pelo corpo, a morada e história de vida de quem partiu, e a relação estabelecida com ela e a sua passagem. Aborda o luto, os rituais pós morte e a forma como eles influenciam a vivência do luto e quem cá fica. Aborda a beleza dos rituais. Este filme resgata a relação que perdemos com os rituais e a sua importância. Resgata a importância da presença plena. É preciso espaço e tempo para sentirmos e vivermos, com lentidão e intenção, sem fugirmos aos momentos. Este filme, resgata a beleza e arte da vulnerabilidade, da morte, das relações em situações difíceis da nossa vida. Resgata a reflexão sobre a morte e como temos olhado para ela. A morte faz parte da vida e ensina-nos a viver, a relacionar-nos melhor, a sermos a nossa melhor versão, a fazermos escolhas mais congruentes com quem queremos ser a cada momento, independentemente da opinião dos outros, a olharmos e assumirmos a nossa responsabilidade na relação com a vida como um todo.

Desenvolver o nosso olhar perante a beleza do outono e invernos humanos, tão bem retratado ao longo do filme através da ligação à natureza que nos rodeia e às estações do ano e à ciclicidade do mundo natural, é fundamental para a forma como vivemos o envelhecimento, a vulnerabilidade, a doença e a morte. Para a forma como as incluímos, ou não, na nossa vida e logo nas nossas relações. Para a forma como prestamos cuidados de qualidade nestas fases da nossa vida e de quem cuidamos.







A Ética Relacional e os Objetivos da Narrativa no Final da Vida


De acordo com Teresa Cabral(7), a narrativa é um tipo de saber e uma forma de o expressar. Não é um saber estático, mas dinâmico e que pode ser usado de boa ou má-fé, para pensar ou partilhar, para controlar e manipular. Assim, o poder estético da narrativa carece de escrutínio ético. Ela tem o potencial de trazer debates, temas que são pouco abordados, de semear e fazer crescer mudanças construtivas e importantes para a comunidade. Tem o poder de aproximar, de relacionar, de criar um espaço de empatia e compaixão com a comunidade.

A medicina narrativa procura o cuidado centrado na pessoa, incluindo profissionais de saúde, doentes e suas famílias. Procura o bem individual e também o comunitário. Como narramos a vulnerabilidade e a morte? Que repercussões tem a nível individual e social a forma como escrevemos sobre estes temas? Como é que a estrutura das narrativas pode trazer beleza e esperança para um assunto que normalmente é interdito na nossa sociedade?


Falar da morte na nossa sociedade é um tabu e tem imensos mitos e preconceitos associados. Associar o fim de vida a sofrimento e a expressões como «terrível» é muito frequente. A iliteracia na área do final da vida é imensa e a medicina narrativa tem o poder de aproximar ou afastar as pessoas. A Medicina Narrativa pode estimular o desenvolvimento das capacidades relacionais e reflexivas relacionadas com o fim de vida. Pode aproximar os leitores da sua própria vulnerabilidade, da do outro, e exponenciar a qualidade de vida nas fases da nossa vida mais vulneráveis. Tem o poder de mudar as políticas da saúde. Por isso a forma como se narra importa, e muito.


A consciência da beleza presente nas nossas vidas pode trazer-nos para o momento presente, permitindo-nos sentir o poder do deslumbramento, da arte. Ralph Waldo Emerson escreveu que “Cada momento do ano tem a sua própria beleza” (1903). Cada estação, cada dia de nossas vidas também tem a sua própria beleza. Cabe a cada um de nós reconhecê-lo. As narrativas podem ajudar-nos a relembrar e desenvolver o olhar perante a beleza que existe no nosso final de vida. A morte faz parte da vida. Se existe beleza na vida porque não o vemos na morte? O que nos impede de nos aproximar destes momentos fundamentais e de tão grande vulnerabilidade humana?


Este filme invoca calma e tranquilidade. Invoca o tempo da lentidão e logo presença plena. Invoca esperança num mundo mais compassivo. Conseguimos sentir a tristeza e a imensa beleza e amor nas fases mais vulneráveis da nossa vida. Sentimos amor na dor e paz na tristeza. Choramos e abraçamos o outro. Aproximamo-nos dele. Queremos tocar e ser tocados da mesma forma. Abre espaço para a conexão da nossa ciclicidade humanas através da invocação dos ciclos da natureza, dos quais fazemos parte, mas teimamos em esquecer.



A Regra de Ouro e de Platina nas Narrativas sobre o Final da Vida


A Regra de Ouro diz-nos que devemos tratar as pessoas doentes como gostaríamos de ser tratados. Mas, quando as experiências vividas e perspetivas dos “pacientes” se desviam substancialmente das nossas, deixamos de ser um barómetro confiável. Nesses casos, a Regra de Platina, leva-nos a considerar fazer às pessoas doentes o que elas gostariam que fizessem a si mesmas. Esta é a forma centrada na pessoa e onde a ética relacional está premente.8 Como Barbosa refere, a relação entre profissional de saúde e pessoa doente permite o auto-crescimento e desenvolvimento de ambos, numa cooperação de cuidados.(9) A regra de ouro não é fidedigna da ética relacional e da boa prática clínica. Como podem os profissionais de saúde cuidar de alguém na sua fase final de vida sem ter consciência dos seus medos, mitos e preconceitos? Como podemos praticar a ética relacional na nossa prática profissional e ajudar a desenvolver a esperança junto das pessoas que cuidamos se não o conseguirmos desenvolver em nós primeiro? Como podemos trazer mais beleza às fases de tanta vulnerabilidade, como o final da vida, se nós próprios não a conseguimos ver? Como conseguiremos acompanhar alguém que está a viver os seus lutos, pela perda de alguém que ama? As emoções escondidas, a conspiração silenciosa dos nossos medos e dificuldade em expressar emoções são demonstrações claras que não é possível existir imparcialidade no cuidado, e logo a não atenção e provimento das necessidades do outro em situação vulnerável. Se esta premissa não existe, a qualidade do cuidado, a qualidade de vida da pessoa cuidada é comprometida. Se não tivermos capacidade para olharmos para a nossa fragilidade humana de abraçarmos os nossos medos e todas as emoções que nos constituem, nunca conseguiremos acompanhar alguém nas suas.

 

Conclusão


A responsabilidade ética das narrativas determina que reflitamos sobre a forma como narramos o mundo. Se tivermos medo e preconceitos relativamente à morte e ao morrer. Se não procurarmos olhar as nossas dores e traumas, estas irão refletir-se nas narrativas. As narrativas não se afastam de quem narra. É possível narrarmos a vulnerabilidade e a morte de forma a trazer beleza e esperança? Sim. É fundamental. Esta narrativa filmica é exemplo disso. Permite-nos aprender, refletir e crescer enquanto pessoas que cuidam de outras pessoas. Permite-nos aproximar da nossa vulnerabilidade e, logo, da do outro.

A narrativa neste filme é um ritual de aproximação. É medicina para um mundo em dor e trauma. É um ritual de reflorestamento, parafraseando Ailton Krenak, das nossas individualidades comunitárias que se têm isolado da sua essência natural. A morte faz parte da vida.

Vejo este filme como medicina de aproximação. Pelo resgate da beleza e amor esquecidos nos momentos de maior vulnerabilidade da vida. Este filme fala sobre Vida e tudo o que ela inclui, nomeadamente a nossa morte. Sem morte não há vida e a forma como vivemos estes momentos são uma escolha que podemos fazer em prol de um mundo muito mais amoroso e compassivo. Somos seres relacionais que se reconhecem e procuram na relação, mesmo e principalmente das alturas de grande vulnerabilidade. Porque não o fazemos na nossa morte?

Daniel e Mandel referem que, o luto e o trauma se não forem tratados adequadamente, podem ancorar-se no corpo, mente e espírito e manifestam-se como luto complicado, doença, depressão, vício ou suicídio.

A beleza e os rituais são ferramentas importantíssimas que nos podem ajudar a caminhar a dor do luto. O ritual é um ato, uma criação, que tem uma intenção, que pretende trazer a presença do sagrado à nossa vida (e sagrado não significa religioso), mudar, transformar, ajudar no processo de morte/passagem e a dor da perda.

A presença da beleza do ritual neste filme relembra-nos e aproxima-nos desta arte, que num mundo veloz, é tão fundamental. Faz-nos sentir. Faz-nos refletir sobre nós próprios e as nossas relações. Faz-nos refletir sobre a vida, da qual a morte faz parte.

Devolver ao final da nossa vida, através de diferentes narrativas, a qualidade de vida que todos os seres vivos merecem, é um imperativo moral e ético da nossa sociedade e, logo, de quem as narra.



Referências bibliográficas


1- Twycross R. Cuidados Paliativos. 2ª edição. Climepsi, editor. Lisboa; 2013. 33 p.


2- Enfermagem CI. Cuidados paliativos para uma morte digna - catálogo da classificação internacional para a prática de enfermagem. 2010. (Acesso 20/10/2024). Disponível:


3 - Beauty and hope: a moral beauty intervention. Rhett Diessner, Teri Rust, Rebecca C. Solom, Nellie Frost and Lucas Parsons; Journal of Moral Education Vol. 35, No. 3, September 2006, pp. 301–317


4 – Gary Whited. Teoría Polivagal, poesia y tept: retrato del poeta como terapeuta del trauma. In: Stephen Porges e Deb Dana.Aplicaciones clínicas de la teoría polivagal. Editorial eleftheria. 2018. pp. 437-457.


5 - Integrating the Healing Power of Beauty into Spiritual Direction by Linda Parnell. A Research Project submitted in partial fulfilment of the requirements of the Spiritual Directors’ Formation Programme of Spiritual Growth Ministries. (Acesso 20/10/2024). Disponível:


6- Teri Rust, Rebecca C. Solom, Nellie Frost, Lucas Parsons. Beauty and hope. A moral beauty intervention Rhett Diessner. Journal of Moral Education Vol. 35, No. 3, September 2006, pp. 301–317.


7 - Casal, Teresa. Narrativa e medicina: a perspetiva da primeira pessoa no encontro clínico. In Narrativa e bioética. Barbosa A. Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Bioética. Faculdade de Medicina de Lisboa. 2013. pp. 55-71.


8- Chochinov, Harvey. The Platinum Rule: A New Standard for Person-Centered Care. Journal of Palliative Medicine. Volume 25, Number 6, 2022.


9 - Barbosa, A. Ética Relacional. In Manual de Cuidados Paliativos; Editores Barbosa A, Neto Isabel. Fundação Calouste Gulbenkian. Centro de Bioética. Faculdade de Medicina de Lisboa. 1ª Edição. Outubro 2006. pp 419-438.


10 - Yojiro Takita (director). Departures (Okuribito). Academy Award Winner for Best Foreign Film. 2008. 130 minut.



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