Fui confrontada, à uns dias, com uma mensagem, de alguém que ainda não conheço. Espero poder conhecer. Esta pessoa viu esta primeira fotografia, no meu histórico do Instagram, que tirei, à beira de uma estrada e ficou triste e desconfortável com esta imagem. Pediu para eu não voltar a colocar estas imagens. Fiquei a pensar neste sentir e no meu. Olhares tão diferentes. Perceções tão díspares da realidade do mundo. Mundos tão diferentes mas, no entanto, fazendo ambas parte do mundo e que, por isso, decidi acolher através deste texto.
O que é morrer?
O que é a morte?
Pinturas celestes, botox colorido e estelar, cheio de purpurinas? Não.
A morte sente-se no corpo. A morte é vivida no corpo. O celeste também o habita. Sim. Mas não nos podemos ausentar da Terra que somos porque, assim, não honramos quem somos, e toda a vida na Terra, incluindo. Somos folha que cai. Somos húmus, fezes, urina, suor, sangue, cheiros não só agradáveis.
Estar em relação é estar com tudo o que somos. Não negar partes de nós. Amar tudo. Acompanhar quem está vulnerável é habitar-nos com ele em tudo o que o outro é. Vulnerável.
Naquilo que faço enquanto enfermeira e doula, direcionado ao envelhecimento e ao final da vida (seja em que idade for), o que me dá mais prazer fazer é trazer beleza, leveza, arte e amor ao mundo. É ajudar a ver beleza em espaços onde, normalmente, ela não é vista. Onde a vulnerabilidade e a doença, colados a um sofrimento infinito, respiram e falam tão alto que mais nada se ouve. É ensurdecedor. Naquilo que faço, procuro que o outro veja e sinta a sua beleza principalmente na sua vulnerabilidade e doença. A beleza que eu vejo nele. A arte é eu sei que é. O Amor. Procuro exponenciar a energia amorosa escondida nos detritos das montanhas patriarcais que carregamos no peito.
Quando tirei esta foto, e outras mais (amo fotografar natureza morta – flores, conchas, etc, mas onde a perceção do humano morto espelhado não é tão evidente e logo não choca tanto), ia a passar de carro, e, sabe-se lá porquê, o meu olhar é atraído, e não traído, para a berma da estrada do lado oposto. Não parei logo. Continuei a andar e o meu coração decidiu voltar atrás. Observei este animal morto, provavelmente comido por outro animal, com o esqueleto e as penas muito vivas. Senti-me parte dele e senti-o parte de mim. Eu sou este animal. Afastei o seu esqueleto da berma da estrada, do alcatrão, onde se encontrava. Coloquei-o sobre a Terra, debaixo de uma árvore. Agradeci em silêncio a sua presença. Seguiu-se um pequeno ritual que fiz em casa, onde disse um rezo: «caminhas comigo». Tirei uma carta e o animal/ mensagem que escorregou, no baralho, foi o falcão / reconhecimento. É só o meu anima de poder, vejam só. Imaginam o meu coração? Transbordou ainda mais de amor. Não há coincidências. Não há separação entre o mundo visível e o invisível. Entre o mundo daquilo que chamamos vivo e não vivo. A minha carne é a carne do mundo. O meu sangue corre dentro da Terra. Quando vejo um animal morto, vejo-me a mim mesma.
Não partilhei a fotografia para chocar. Mas talvez precisemos acordar. Olhar o trauma com carinho. Trazer beleza aos espaços selvagens que somos. Enquanto o selvagem andar escondido o Amor não se manifestará.
O que sentes?
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