“Caminho sobre a Terra, observo as árvores e os pássaros. Sei quem sou quando a observo, sinto e oiço. Sempre que me perco de mim, reencontro-me na natureza. O seu corpo é o meu. Sempre que perco o sentido e a esperança no mundo, é o seu colo que me acolhe. E é a ela, que somos nós também, que dedico este livro.”
Ana Catarina Infante – a passagem
a)Indique o (ou os títulos) que nesta altura consideraria atribuir à sua narrativa de vida.
NÃO SEI – O ESPAÇO DO ENCONTRO
“(...)To be embodied is to be in flight. To be embodied is to be beside oneself, perpetually spilling away from resolution. (…)To be re-paired is to be re-coupled-with-an/other in an ever-moving, carnivalesque and alien cavalcade of exchangeable organs and reiterable subjectivities. The monster is not the brutal beast standing in the way of our imperial march in imperviousness; the monster is the irresistible reminder of our molecular debt to this multi-species migritude of all things.”
Bayo Akomolafe
Todos os percursos que escolhi fazer, e que a vida me foi conduzindo a empreender, ao longo da minha vida, foram propulsores de processos de transformação internas. “Vivências e experiências”, nas palavras de Christine Josso. Espaços onde o desconhecido é vigente. Onde o “terceiro espaço” que acontece apenas no encontro da relação, no agora, é o limite que aproxima e onde o potencial transformador aparece. É nos espaços de encontros que o movimento da vida se “anima” em mim. Sou parte da Vida que é movimento contínuo e onde a dissolução, de quem sou, é a minha identidade. Sou a dissolução. Sou Vida e Vivo-a em mim, no meu corpo, físico, emocional, intelectual, social, familiar, cultural e todos os corpos que me constituem. Já me pensei ser católica, não sentindo o sentido. Através da dúvida do abismo, descobri-me animista, onde todas as práticas religiosas e espirituais se incluem. Já me pensei ser mãe. Descobri-me outra Mãe, de outra forma, de alguns sonhos e projetos paridos. Já me pensei ser um determinado tipo de filha. Descobri-me pessoa. Descobri os meus pais como pessoas. Não apenas pais. Este movimento de que falo é um reconhecimento racionalmente consciente e que fui reaprendendo a reconhecer em mim. Mas antes desta descoberta consciente ele já existia. Desde o meu nascimento, desde a minha concepção. Antes dela. A diferença é que ao longo do meu crescimento e desenvolvimento do meu cérebro racional, fui esquecendo a abraçar a lei do movimento da vida que vive no meu corpo e cérebro emocional e reptiliano. Já em adulta aprendi a resgatar esta sabedoria. A sabedoria somática e não dual. Unindo os três cérebros. Todos os corpos. O encontro observa-se na pausa que existe entre cada inspiração e expiração, dentro do abismo, que em mim habita, para que eu me reconheça Vida. Para que eu me veja ao espelho e encontre. O meu próprio corpo é um encontro constante com todos os seres que nele habitam. Cosmologia viva. Se não houver espaço, limite, abismo, não há encontro. Não me vejo através da distância que é fundamental para olhar o espelho.
O que quero dizer com encontros? Encontro são os espaços das minhas relações: familiares, amizade, íntimas, profissionais, com as pessoas doentes, com o mundo natural, com os animais, comigo própria. Daqui destaco as relações íntimas e os encontros com as pessoas com doenças crónicas e irreversíveis, e as suas famílias, como “experiências fundadoras”, mais uma vez nas palavras de Josso. Desaprendi, aprendi e aprendo com todos eles. Desaprendi e aprendi muito especialmente com as pessoas que acompanhei no último respirar. Que histórias contamos a nós próprios quando a morte vem ao nosso encontro? A morte é um oportunidade de reencontro. Connosco. Através da morte do outro descobri as minhas mortes. Relembrei a minha/nossa Natureza.
Destaco também, como “experiências fundadoras”, retiros de meditação vipassana, e outros, onde olhar para a realidade do mundo como ele é, todo o trauma do mundo, onde o meu está colado, com toda dor que provoca, a partir do encontro com o meu corpo, foi catalisador no meu percurso pessoal, espiritual, comunitário. Formações de desenvolvimento pessoal, como a formação de doulas do nascimento, onde os conceitos da cultura colonial e capitalista foram caindo como cartas de um baralho e onde o efeito “eureka” fez emergir a gratidão pela vida mas também as suas maiores sombras. Não descobri apenas o outro. Descobri-me com o outro.
Através do encontro da relação conseguimos “contar e ouvir” a nossa própria história, dentro de nós. Vemo-nos refletidos em espelho e este devolve-nos a realidade de quem somos, mesmo e principalmente, as arestas mais escondidas que não gostamos de mostrar, nem a nós próprios. Sentimos o outro através de nós. Refletimos sobre o que ele diz sobre nós. Quais as partes que mais se evidenciaram para nós e o porquê. O encontro permite-nos uma introspeção da nossa vida, da nossa prática profissional, da pessoa que somos, que achamos ser. Da comunidade onde vivemos.
Eu cuido do outro. O outro cuida de mim. Somos cuidados.
Somos seres osmóticos em osmose constante. Membranas permeáveis.
O conjunto de aquisições acumuladas durante a vida foram descritos e agrupados em quatro categorias, segundo a teorização proposta em Cheminer vers soi, de acordo com Josso:
“– as aprendizagens existenciais que são constitutivas do conhecimento de si como ser psicossomático em nossas dimensões de ser no mundo e os nossos registos de expressão;
– as aprendizagens instrumentais que reúnem os processos e procedimentos em todos os domínios da vida prática numa dada cultura e num dado momento histórico;
– as aprendizagens relacionais que são as aquisições de comportamentos, estratégias de trocas e de comunicação com o outro, do saber-ser em relação consigo , com o outro e com o mundo;
– as aprendizagens reflexivas permitem a construção do saber-pensar nos referenciais explicativos e compreensivos.”
Aqui, neste livro, espreito a aprendizagem existencial, relacional e reflexiva através do reconhecimento do que me acontece somaticamente: quando se inicia um processo de transformação intenso, um tornado suga-me para o seu interior, como se entrasse numa máquina de lavar a roupa, e o turbilhão não é só físico mas emocional também. Abismo. Oportunidade para reconhecer e olhar o encontro. No inicio, de alguns encontros, posso ver-me e sentir-me desfragmentada. Noutros, a clareza de quem vejo ao espelho é cristalina. Aprendi e aprendo a reconhecer os movimentos das estações em mim (primavera, verão, outono, inverno, primavera) e a ter ferramentas que me permitem navegá-las com mais tranquilidade mas sem fugir ou negar o caminho e lutos que fazem parte da Vida que Sou. Há movimentos mais suaves. Outros mais tumultuosos. Mas existe sempre movimento.
Bataille G, no seu livro o erotismo diz: “somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas ansiamos nostalgicamente pela continuidade perdida. Convivemos mal com a situação que nos une à individualidade do acaso, à indivisibilidade perecível que somos. Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado pela duração desse perecível, temos a obsessão por uma continuidade primeira, que nos religa geralmente ao ser.”
Sou muitas fendas escuras por onde me respiro e respiro o mundo. É nos limites entre o tu e o eu, o outro e aquilo que sou agora, que o encontro se dá, continuamente. Em que acontece a atração, o erotismo do querer encontrar, explorar. É na curiosidade, no não saber tudo do outro, e de nós próprios, que faz com que o movimento da vida se encontre perante a própria vida. Tudo é relação. Tudo é encontro. Tudo é mistério. O desencontro é um encontro por si só. Andreas Weber diz que tocamos o exterior para sentir o interior. Por outras palavras, criamo-nos através dos corpos de outros seres e vice- versa. Somos matéria que se respira.
A pessoa que nasci a ser não é de todo a pessoa que sou hoje. O que mudou em mim com todos os encontros? A minha capacidade de ser bosque.
c) Se assim o entender, em que sentidos prenuncia eventuais mudanças futuras no título (ou títulos) que ora escolheu?
Prenuncio roturas. Tornados. Desfragmentações. De menor ou maior intensidade.
Prenuncio leveza. Suavidade. Erotismo. Prazer.
Porque as desfragmentações, os tornados, as roturas não têm que ser sinónimas de inferno e sofrimento.
Porque o céu e o inferno são estruturas fundadoras de quem sou.
Quanto mais sinto a integração do bosque em mim, mais vivo os processos de vida transformativa de forma mais amorosa e compassiva. Mais integro todos os elementos fundamentais de um bosque saudável. Não separo. Abraço. Agrego.
Prenuncio maior entrega. Abertura.
Prenuncio limites.
Mais silêncio e mais espaços no não saber. Imagino buracos negros onde tudo habita mesmo não sabendo o que lá mora.
Mais leituras, mais poesia, mais música, mais beleza, mais fungos. Mais solo. Mais Medicina.
Prenuncio mais curiosidade pelos outros, pela vida, pelas questões.
Prenuncio mais dúvidas.
Prenuncio mais comunidade. Mais colo de mim para mim e da comunidade exterior. Porque no bosque vivem milhares, triliões de seres diversos entrelaçados em comunidade. Somos seres sociais. Numa sociedade onde o individual ganha espaço é fundamental exponenciar os espaços onde o colo seguro, amigo, familiar estejam presentes.
Aprendo a Ser Natureza num corpo com limites somáticos humanos.
O novo título: Bosque.
Referências
1- Josso, Marie. A transformação de si a partir da narração de histórias de vida - Self-transformation through narratives of live stories. In: Educação. Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 3 (63), p. 413-438, set./dez. 2007. Acesso em Junho de 2023:
2- Bataille G. O erotismo. Edições 70. Outubro 2021
3 – Site para consulta: https://www.bayoakomolafe.net/
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